Abdullāh al-Hibṭī: Um reformador religioso no Marrocos do século XVI

Abdullāh al-Hibṭī  (n. 890 a.H./1485 d.C.) nasceu perto de Tânger, no Marrocos, e cedo na vida ficou órfão. Mudou-se para Chefchaouen com seu irmão mais velho e lá estudou na juventude. Foi então para Fez e depois viajou pelo Marrocos para estudar.

Em Marrakech, tornou-se discípulo de Abdullāh al-Ghazwānī, o segundo sucessor de Moulay al-Jazūlī na Tariqa Jazūliyya. Voltou em seguida a Chefchaouen e procurou um antigo colega de classe, Muḥammad ibn Khajjū (m. 955 a.H./1550 d.C.), que exercia na cidade a função de juiz. Seu amigo ficou horrorizado ao saber que Abdullah havia se tornado um sufi, mas depois conheceu Ghazwānī e também se tornou seu discípulo, chegando a escrever um tratado para defender a doutrina jazulita à qual antes se opunha.

Em 917 a.H. (1511 d.C.), os dois amigos se uniram para estruturar um projeto de reforma social e religiosa para a região em que viviam. Para isso contaram com a ajuda da irmã de Ibn Khajjū, Ᾱminah, que era esposa de Hibṭī. Ela, que também tinha formação jurídica plena, montou uma zawiya ao lado da do seu marido e ensinava os fundamentos do Islam e do sufismo às mulheres locais. Hibṭī herdou de seu mestre a prática de iniciar e treinar mulheres para se tornarem professoras e líderes religiosas.

Hibṭī compôs um poema de 1000 versos em que explicava e combatia os motivos da decadência da religião. Em sua opinião, a principal causa dos problemas sociais era a falta de fé. A esta acrescentavam-se a ignorância e o analfabetismo, a convivência com os portugueses cristãos e uma lealdade excessiva aos costumes. Além disso, criticava os eruditos de seu tempo pela falta de preocupação com o colapso moral que os rodeava. Chamava os eruditos oficiais de “rabinos” devido à sua preocupação maior com a letra do que com o espírito da lei.

Além disso, enfatizava a necessidade do estudo por parte das mulheres e o promovia. Preocupava-se com o fato de as mulheres, que são as primeiras professoras das crianças, estarem despreparadas para inspirar o conhecimento do Islam em seus filhos. Acreditava que a culpa dessa triste realidade cabia a seus maridos e pais e, assim, declarava que os homens casados ​​eram responsáveis ​​pela educação moral e intelectual de suas famílias. Aderia assim à visão islâmica clássica segundo a qual o homem é o imām (líder temporal e espiritual) da família e esta constitui uma umma (nação) islâmica em miniatura. Crianças ignorantes acabam se tornando adultos pecadores, minando a base moral da sociedade. A preocupação de Hibṭī com a formação religiosa feminina era tamanha que Musa ibn ʿAlī al-Wazzānī, um de seus discípulos, submetia as noivas a uma prova de conhecimento islâmico antes de celebrar seu casamento.

Hibṭī e Ibn Khajjū percorriam os povoados do norte do Marrocos e buscavam convencer seus líderes da necessidade de mudança. Em seguida, reuniam os habitantes e questionavam-nos sobre o que sabiam a respeito dos ensinamentos do Islam. Ressaltavam a necessidade de conhecerem a história da religião, a doutrina do monoteísmo, os cinco pilares, as normas de higiene e purificação corporal e as regras referentes aos períodos mensais e ao período de espera a que a mulher deve se submeter depois da morte de seu marido. Os dois permaneciam no povoado até que os líderes assinassem um contrato, jurando que proibiriam a usura, incentivariam as cinco orações diárias e seguiriam a Sunna.

Se não houvesse uma mesquita no povoado, Hibṭī e Ibn Khajjū supervisionavam sua construção e ficavam ali por tempo suficiente para garantir que fosse adequadamente mantida. Caso ali se vendessem bebidas alcoólicas, convenciam os fornecedores a deixar a localidade ou entrar em outro ramo de negócios. Opunham-se frontalmente aos tatuadores e chegaram a expulsá-los por completo da região de Chefchaouen.

Além de trabalhar pela educação das mulheres e pela reforma religiosa, Hibṭī percorreu várias regiões do Marrocos para convencer os líderes e o povo de que era uma obrigação defender suas terras e sua religião contra os portugueses. Preocupava-se com os muçulmanos que se convertiam ao cristianismo nas regiões sob domínio português e com a perniciosa influência europeia dos refugiados andaluzes sobre o povo marroquino. Várias vezes foi espancado e encarcerado pelos líderes locais, fazendo com que no final de sua vida mal conseguisse andar.

A imagem que nos chega de Hibṭī é a de uma pessoa altamente equilibrada. Em primeiro lugar, unia em si a formação jurídica e teológica e as práticas meditativas e contemplativas dos sufis. Embora fosse rigorosamente ortodoxo, criticava a obediência cega aos costumes. Além disso, sempre preferiu realizar suas reformas mediante negociação. Ao assinar contratos com os líderes e anciões tribais, não só comprometia esses líderes com seus projetos educacionais como também evidenciava seu respeito pelas estruturas locais de governo, demonstrando a importância do consenso em todo processo de mudança social. Seguia, nisso, o processo islâmico de consulta (shūrā) para determinar e unificar a vontade geral. E distinguiu-se, acima de tudo, pela preocupação com a condição das mulheres e pela ênfase na educação como meio de edificação do povo. Em tudo isso, foi um representante fiel dos valores islâmicos originais, entendendo a Sunna não somente como modelo de comportamento, mas também como um modo de consciência que, interiorizado pelo crente, homem ou mulher, o guia infalivelmente rumo às melhores ações.

Referências: Vincent J. Cornell, Realm of the Saint: Power and Authority in Moroccan Sufism (Austin: University of Texas Press, 1998). Masooda Bano e Hilary Kalmbach. Women, Leadership and Mosques: Changes in Contemporary Islamic Authority (Boston: Brill, 2012). Foto de Jaanus Jagomägi no Unsplash.