Perspectivas sobre a Pandemia
A Editora Bismillah, a fim de trazer uma reflexão profunda e construtiva como forma de se contrapor às desinformações e angústias que permeiam este momento de crise global, traz um pronunciamento do Sheikh Abdal Hakim Murad, um dos maiores nomes do Islam tradicional no Ocidente. Sheikh Abdul Hakim é reitor e fundador do Cambridge Muslim College e professor da Universidade de Cambridge no Wolfson College.
Segue um resumo de seu inspirador pronunciamento sobre a atual pandemia; mas também deixamos disponível para download o texto completo (neste link), que vale a pena ler.
“O Céu decidiu que viveríamos numa época interessante. Inicia-se agora uma das mais graves crises mundiais em muitas décadas, e é correto que os muçulmanos reflitam, aproveitando esses novos dias longos e silenciosos. Antes de o fazermos, no entanto, devemos nos isolar da mídia sensacionalista e apavorada; devemos negar ouvidos aos políticos de segunda categoria, atrapalhados com a situação; devemos olhar das nossas janelas para o sinistro vazio das ruas e pensar sobre o que Deus quer dizer com isso. (…)
Os micróbios (…) fazem parte da sinfonia do equilíbrio do ecossistema do mundo e também pertencem ao exército de Deus. Às vezes eles nos servem por meio dos nomes divinos al-Razzaq, al-Latif: nosso estômago e intestino são cheios de micróbios, e sem eles não poderíamos digerir nosso jantar; na terra, eles decompõem a matéria morta e a fazem retornar ao solo; eles limitam as populações naturalmente, mantendo o equilíbrio, o mizan, da criação, em que cada espécie tem direito ao seu espaço. Em outras circunstâncias, contudo, eles servem aos nomes divinos al-Qahhar e al-Muntaqim, O Subjugador e O Vingador. (…)
E assim as histórias corânicas do confronto entre a verdade e o poder nos contam, vez após vez, que o Faraó não é derrotado por outra superpotência, mas por um profeta maltrapilho, membro de uma raça odiada constituída de imigrantes e trabalhadores importados, um homem que chegava a duvidar da sua própria capacidade de falar com clareza. Descalço, ele se põe perante o trono de Mênfis, desafiando os magos do estado autocrata cuja riqueza é destinada de maneira insana à criação de mausoléus de mármore para os mortos putrefatos; o autocrata desdenhoso vira-lhe as costas e as pragas do Egito assolam sua terra. Que poder pode ter o seu ministro da defesa contra os sapos, o sangue e as doenças que cobrem a ele e ao seu povo com feridas purulentas? Novamente, os menores membros do reino da natureza são usados pela Providência para atacar uma megaestrutura destrutiva e injusta de opressão e orgulho. (…)
As pragas e pestilências não são nada novo ou surpreendente para o Islam. Observando nossos textos, vemos a palavra waba’ definida como epidemia e i‘da’ como contágio, e o Islam medieval sabia perfeitamente que o resultado poderia ser um massacre. Ibn Battuta, ao descrever a peste negra no Cairo, registra que morriam vinte mil pessoas por dia e que os imãs gritavam: “Shahada, Shahada!” A referência, sem dúvida, era ao hadith de Bukhari que diz que aqueles que ficam numa terra assolada pela peste, reconhecendo que nada pode lhes acontecer senão pelo decreto de Allah, receberão uma recompensa igual à dos mártires. (…)
Os médicos muçulmanos pré-modernos, bem como os ‘ulama que refletiram sobre doenças contagiosas, tinham em mente um mundo social em que as expectativas humanas sobre a vida e a dunya eram modestas. (…). A nossa atitude moderna para com a morte é muito fora da realidade, evasiva e estressante: as crenças ateístas, que por si se espalharam como um vírus graças às substâncias impuras que se acumularam em nossos corações, convencem muitos de que a morte clínica é o nosso fim. Tal como o Alcorão descreve essas pessoas: “Eles dizem: nada há, exceto nossa vida deste mundo; estávamos mortos, vivemos, e somente o Tempo nos destrói.”
Essas pessoas têm um temor trágico da morte. Na verdade, é esse o maior terrorismo que assombra a humanidade na nossa era: a terrível ameaça de um nada eterno e sem sentido. Na Arábia antiga, os árabes da Jahiliyya não tinham confiança na vida após a morte, mas o Homem do Louvor, no momento mais triste de seu confronto com eles, escutou: “O outro mundo será para ti melhor que este”. E na Surat al-A’la: “Entretanto, vós preferis a vida terrena, ainda que a outra seja melhor e mais duradoura.”
A morte é uma parte normal e natural da nossa frágil realidade humana e seu decreto procede de um nome divino inexorável, al-Mumit, Aquele que Mata. A humanidade pré-moderna via a morte em toda parte ao redor de si, mas sabia como lidar com ela; os rituais ajudavam bastante, mas algo que curava ainda mais era a consciência da sabedoria e da misericórdia divinas. O Homem do Louvor disse, notavelmente: “tuhfat al-mu’min al-mawt”, a dádiva preciosa do crente é a morte – pois ele passa deste mundo decepcionante para o mundo de puro significado e misericórdia. É fato que o Santo Profeta nos diz para não desejarmos a morte: “Que nenhum de vós deseje a morte”, pois o nosso fim é segundo o decreto d’Ele, não segundo a nossa preferência. Simplesmente a aceitamos tranquilamente como uma expressão da sabedoria divina. (…)
Portanto, o wali, a pessoa verdadeiramente muçulmana, é daqueles que “la khawfun ‘alayhim wa-la hum yahzanun”: aqueles que não temem nem se entristecem. Pois Deus nos mandou dizer: “lan yusibana illa maa kataba’Llahu lana”: nada nos afligirá, senão o que Deus escreveu para nós. Assim, guardamos luto pelos mortos, e este é um reflexo natural e curativo; e cremos na medicina, mas não entramos em pânico. A morte é parte natural do sistema glorioso do universo de Deus, com seu ciclo de nascimento, crescimento, fertilidade e morte, uma criação que contém jamal e jalal – não só a Beleza, mas também o Rigor. (…)
Estávamos todos correndo muito rápido atrás da dunya e agora precisamos parar e respirar um pouco. Que entremos no Ramadan, portanto, num estado de calma e preparação para rezar e ter atenção para com os nossos deveres e para com a presença de Deus Todo-Poderoso. Que este seja o melhor Ramadan da nossa vida, sem preguiça e cheio de um amor familiar construtivo, de perdão, oração e obtenção de conhecimento. Que este autoisolamento termine, tal como sempre termina o Ramadan, não com uma sensação de alívio, mas com uma noção de que acabamos de viver um período espiritual e especial, do qual sentiremos falta.”
Glossário
al-Razzaq, al-Latif: os nomes de Deus “O Sustentador”, “O Sutil e Benevolente”.
dunya: este mundo.
hadith: um dito do Profeta Muhammad (que a bênção e a paz de Deus estejam com ele) conservado pelas linhagens de transmissão da tradição islâmica.
Jahiliyya: “ignorância”, o nome pelo qual é conhecida a era pré-islâmica.
mizan: balança.
shahada: “testemunho”, usado no texto no sentido de “martírio”. A palavra pode se referir também aos dois testemunhos da fé islâmica: “Não há divindade exceto Deus e Muhammad é o Mensageiro de Deus.”
sura: um capítulo do Alcorão.
wali: santo, amigo de Deus.