A educação dos filhos segundo o Imam Al-Ghazali

Em nome de Deus, o Infinitamente Bom, o Misericordioso.

Deve-se saber que o método de educação dos filhos é um dos assuntos mais importantes e essenciais. O filho é dado em confiança nas mãos de seus pais, e seu coração puro é uma pedra preciosa e imaculada, livre de qualquer entalhe ou forma, que pode ser gravada e lapidada de modo a assumir qualquer formato. Se a criança for habituada e ensinada a ser boa, isso determinará sua educação. Ela será feliz neste mundo e no outro e seus pais, professores e educadores participarão de sua recompensa. Se, por outro lado, a criança for habituada ao mal e se os pais descuidarem dela, como se fosse um animal, ela será infeliz e cairá na destruição, e seu pecado será compartilhado pelos responsáveis por sua criação.

Deus Altíssimo diz: Ó vós que credes! Protegei a vós e a vossas famílias de um fogo (66.6). Ou seja, se o pai protege o filho do fogo deste mundo, mais ainda deve protegê-lo do fogo do outro mundo. Salvá-lo-á do fogo do inferno ensinando-lhe um bom comportamento, boas maneiras e um caráter excelente e protegendo-o das más companhias. A criança deve ser impedida de se acostumar com as facilidades e confortos e não deve ser ensinada a amar os adornos e o luxo, para que não desperdice sua vida na busca dessas coisas quando crescer e não acabe se perdendo eternamente.

Ao invés disso, a criança deve ser supervisionada desde sua primeira infância. Mesmo ao selecionar uma ama de leite, deve-se escolher somente uma mulher justa e religiosa, que coma apenas alimentos lícitos, pois o leite produzido a partir de alimentos ilícitos é desprovido de bênção. A constituição física da criança criada com tal leite será misturada com impurezas, fazendo com que sua natureza também se desvie para a impureza.

Quando os pais detectam na criança o início do discernimento, devem se dedicar ainda mais a supervisioná-la. O primeiro sinal do discernimento é o surgimento da vergonha na criança. Quando ela começa a demonstrar modéstia e vergonha e deixa de lado certos comportamentos, isso nada mais é do que o brilho da luz do intelecto nela, que o leva a ver certas coisas como erradas ou ruins. Assim, começa a ter vergonha de certas coisas, mas não de outras. Isto é um presente de Deus para ela e uma boa notícia, indício de um caráter equilibrado e de um coração puro e auspício de um intelecto saudável quando ela chegar à idade adulta. É imprescindível não negligenciar a criança que demonstra esse tipo de vergonha, mas usar sua vergonha e seu discernimento para refinar ainda mais seu comportamento.

A primeira característica a se apoderar de uma criança é a gula. É essencial discipliná-la neste assunto. Por exemplo, ela só deve pegar os alimentos com a mão direita, deve dizer “Bismillah” antes de comer, deve comer apenas o que está do seu lado do prato e não deve correr para pegar comida antes dos outros. Não deve olhar com avidez para a comida ou para outra pessoa que esteja comendo. Não deve comer com pressa; deve mastigar bem a comida, fazer uma pausa entre os bocados e tomar cuidado para não sujar as mãos ou as roupas.

Além disso, deve se acostumar às vezes a comer somente pão, para que não venha a considerar a mistura ou o tempero como uma necessidade. Deve ser ensinada a desprezar o comer em excesso. Para isso, deve-se dizer a ela que as pessoas que comem demais são como animais; deve-se censurar diante dela as crianças que comem em excesso e elogiar as que evidenciam boas maneiras e comem moderadamente.

Ela deve ser ensinada a ter gosto por compartilhar o alimento, a dar pouca importância à comida e a se contentar com alimentos simples, sejam quais forem.

Deve-se educar o menino para que prefira roupas brancas, não coloridas ou sedosas. Deve-se dizer a ele que estas últimas são roupas de mulheres e de homens efeminados, e que homens de verdade desprezam esse tipo de coisa. Isso deve ser enfatizado repetidas vezes.

Caso se o encontre vestindo uma roupa de seda ou uma roupa colorida, deve ser censurado e repreendido. Não se deve permitir que esteja na companhia de crianças acostumadas ao conforto e ao luxo e que usam roupas caras, bem como de qualquer um que o faça desejar essas coisas.

Caso não se preste atenção à educação da criança na primeira infância, muito provavelmente ela se tornará mal-educada, mentirosa, invejosa, ladra, dedo-dura, preguiçosa, ociosa em palavras e atos, frívola e dissimulada. No entanto, ela pode ser salva de tudo isso através de uma boa educação.

Mais tarde, quando a criança frequentar a escola primária, deve se ocupar do estudo do Alcorão, das narrações proféticas, das biografias dos justos e de suas características, para que o amor pelos justos se enraíze em seu coração.

Deve ser protegida das poesias românticas e assuntos relacionados e impedida de se misturar com pessoas que se consideram “tipos literários” e acreditam que o cultivo desse tipo de poesia faz parte da elegância e do refinamento. Pelo contrário, ela planta nas crianças a semente da corrupção.

Sempre que a criança fizer um ato louvável ou exibir um belo traço de caráter, deve ser honrada, receber uma recompensa que lhe agrade e elogiada na frente de todos. Se fizer algo contrário a isso em uma ocasião apenas, deve ser ignorada e não deve ser exposta. Não se deve dar a ela a impressão de que seja concebível que alguém tenha a audácia de cometer tal ato, sobretudo se a própria criança o estiver ocultando e se esforçando para encobrir o que fez. Se seu segredo for desmascarado, isso pode acabar aumentando sua ousadia e fazendo-a perder o medo de ser descoberta.

Se, no entanto, ele cometer o ato indesejável uma segunda vez, deve ser repreendida em particular; a abominação de seu ato deve ser explicada e ela deve ser avisada: “Nunca mais faça isso, pois, se fizer, e as pessoas descobrirem, todos pensarão que você é mau.” Os pais devem ter cuidado para não repreender a criança o tempo todo, pois ela deixará de levá-los a sério depois de algum tempo; encarará os atos maus com leviandade e as palavras não a afetarão mais.

O pai deve se dar ao respeito diante da criança e só deve repreendê-la de vez em quando. Quanto à mãe, deve instilar no coração da criança a reverência pelo pai e repreendê-la quando ela fizer algo ruim.

É imprescindível que a criança maior seja impedida de dormir durante o dia, pois isso gera preguiça; no entanto, não deve ser impedida durante a noite. Os colchões macios devem ser evitados, para que seus membros se tornem fortes, o corpo permaneça magro e ágil e ela seja capaz de tolerar a ausência de conforto. Deve se acostumar com camas, roupas e alimentos rústicos.

É imprescindível impedi-la de fazer algo em segredo, pois só esconderá suas ações se achar que está fazendo algo errado. Se isso lhe for permitido, ela se acostumará com os maus atos.

A criança deve ser habituada a dedicar parte do dia à atividade física, a caminhadas e exercícios, para que a preguiça não se torne uma característica sua. Deve ser habituada a não descobrir os braços e as pernas e a não andar com pressa. Não deve deixar as mãos soltas, mas deve segurar uma mão com a outra diante do corpo. Não se deve permitir que se vanglorie diante de seus amigos sobre a riqueza ou os bens de seus pais, ou sobre seus alimentos, suas roupas e seus livros. Ao contrário, deve ser ensinada a ser sempre humilde e generosa para com todos aqueles com quem tem contato e a falar com eles com bondade e gentileza.

Se for de família abastada, não se deve permitir que receba coisas de outras crianças se lhe for dada a oportunidade, pois isso é vergonhoso. Deve-se ensinar a ela que a verdadeira nobreza está em dar e não em receber, e que receber é censurável, degradante e vil. Se for de família pobre, deve-se ensinar que receber e cobiçar são traços aviltantes que levam à humilhação: são as características de um cão que está sempre abanando a cauda à espera do próximo bocado que lhe atirarem.

As crianças devem ser condicionadas a adquirir um desgosto geral pelo dinheiro e até por desejar o dinheiro. Devem mais ser advertidas contra isso do que contra cobras venenosas e escorpiões, pois a calamidade do amor ao dinheiro e do desejo por ele é pior do que a calamidade do veneno para as crianças, para não mencionar os adultos.

A criança deve ser habituada a não cuspir, assoar o nariz ou bocejar em público. Não deve voltar as costas para as pessoas. Não deve se apoiar somente num pé, não deve apoiar o queixo nas mãos nem apoiar a cabeça no antebraço, pois todos esses são sinais de preguiça. Deve ser ensinada a sentar-se corretamente. Deve ser impedida de falar demais, explicando-se que isso indica falta de vergonha e é o comportamento de crianças travessas. Não se deve permitir que faça juramentos, verdadeiros ou falsos, para que isso não se torne um hábito na juventude. Deve ser ensinada a não iniciar conversas quando em companhia dos mais velhos, a adquirir o hábito de só falar para responder a uma pergunta, a responder apenas ao que lhe for perguntado e a escutar os mais velhos com atenção quando eles falam. Deve se levantar quando uma pessoa superior chega; deve dar-lhe espaço para sentar e sentar-se à frente dela.

A criança deve ser impedida de tagarelar, de usar gíria e palavras vulgares, de praguejar e de ofender os outros com suas palavras, bem como de se misturar com pessoas que tenham qualquer um desses comportamentos, pois não há dúvida de que esses hábitos são adquiridos das más companhias. Na verdade, o princípio mais importante na criação dos filhos é protegê-los das más companhias.

É obrigação da criança, se for castigada fisicamente pelo professor, não gritar nem chorar em excesso, nem ainda pedir ajuda a ninguém. Deve suportar o castigo com paciência e aprender que essa é a característica dos homens corajosos, ao passo que o choro excessivo é característico dos escravos e das mulheres.

É necessário que se deixe a criança brincar e descansar após um dia cansativo na escola, mas não ao ponto de se cansar de tanto brincar. Caso se impeça a criança de brincar e se a obrigue a estudar o tempo todo, seu coração definhará, sua inteligência se desvanecerá e sua vida se tornará amarga, de modo que ela começará a procurar truques e maneiras de fugir da situação em que se encontra.

É imprescindível ensinar a criança a obedecer a seus pais, orientadores, professores e qualquer pessoa mais velha, parente ou não, a respeitar e honrar os mais velhos e a parar de brincar quando em sua presença.

Quando a criança atinge a idade do discernimento [seis ou sete anos], não se deve permitir que ela negligencie a purificação ritual e a oração. Deve ser aconselhada a jejuar alguns dias do Ramadan e [se for menino] não deve usar seda ou ouro. Deve ser ensinada tudo o que precisa saber sobre as proibições da lei islâmica e treinada para ter medo de roubar, comer alimentos ilícitos, ser traidora ou mentirosa, cometer vulgaridades e outros comportamentos semelhantes da infância.

Se a criança for educada desta maneira desde a infância, quando se aproximar da puberdade ela compreenderá os segredos destes assuntos. Deve-se então ensiná-la que o alimento é um remédio cujo único propósito é fortalecer o corpo para que a pessoa possa realizar atos de obediência a Deus, o Poderoso e Exaltado; que este mundo, em sua totalidade, não tem realidade porque não dura; que a morte põe fim a todos os prazeres; e que este mundo é uma morada pela qual passamos, mas na qual não nos instalamos. Também se deve ensiná-la que a outra vida é a morada em que nos estabeleceremos em definitivo; que a morte nos espreita a cada momento; e que o homem inteligente e sábio é aquele que se prepara neste mundo para o mundo vindouro, elevando assim sua posição diante de Deus Altíssimo e aumentando os prazeres que o esperam no Jardim.

Se sua educação tiver sido boa, essas palavras, ditas a ela na época da puberdade, serão eficazes, impactantes e penetrantes e serão fixadas em seu coração como entalhes em pedra. Se sua educação não tiver sido boa e ela tiver se acostumado às brincadeiras, à vulgaridade, à falta de vergonha, à gula, às roupas e adornos e à ostentação, seu coração repelirá a verdade como uma parede repele a terra seca [usada como reboco]. Portanto, o período inicial é aquele que deve ser monitorado com mais cuidado. A criança em sua essência é uma criatura capaz de aceitar tanto o bem quanto o mal, e são seus pais que a moldam numa dessas duas direções. O Profeta (que a bênção e a paz estejam com ele) disse: “Todo recém-nascido vem ao mundo na natureza primordial pura (fitra), e são seus pais que o tornam judeu, cristão ou masdeísta.”

Sahl ibn `Abdillah al-Tustari disse: “Quando eu tinha três anos, acordava à noite e observava meu tio materno, Muhammad ibn Siwar, rezando. Um dia, ele me disse: ‘Você não se lembra de Deus, que o criou?’ Perguntei: ‘Como devo me lembrar d’Ele?’. Ele respondeu: ‘Todas as noites, quando estiver deitado, diga em seu coração sem mover a língua: Deus está comigo, Deus está me observando, Deus está me testemunhando.’ Fiz isso durante algumas noites e informei meu tio; ele me instruiu a dizer a mesma coisa sete vezes a cada noite. Comecei a fazer isto, depois o informei novamente, e ele me disse para aumentar para onze vezes. Fiz isto, e a doçura dessas palavras impactaram meu coração.

“Depois de um ano, meu tio me disse: ‘Lembre-se do que lhe ensinei e persevere nisso até entrar no túmulo, pois isso o beneficiará nesta vida e na outra.’ Mantive essa prática por alguns anos e encontrei sua doçura no mais íntimo da minha alma. Então, um dia, meu tio materno me disse: ‘Ó Sahl, se Deus está com uma pessoa, a observa e a testemunha, será que essa pessoa pode desobedecê-Lo? Cuidado com a desobediência!’

“Eu tinha o costume de ficar em retiro. Tinha que começar a ir para a escola, mas tinha medo que isso prejudicasse minha aspiração [de adorar a Deus]. Entretanto, foi combinado com o professor que eu iria estudar com ele por um tempo determinado todos os dias e depois voltaria para casa. Durante a escola primária, estudei o Alcorão e o memorizei aos seis ou sete anos de idade. Costumava jejuar todos os dias e comia apenas pão de cevada até a idade de doze anos.

“Quando tinha treze anos, ocorreu-me uma pergunta que não consegui resolver, então pedi à minha família que me enviasse aos estudiosos de Basra para que pudesse consultá-los. Assim, vim a Basra e consultei os estudiosos da cidade, mas nenhum conseguiu resolvê-la para mim. Saí então para `Abādān para ver um homem chamado Abu Habib Hamza ibn Abi `Abdillah de `Abādān e lhe fiz minha pergunta. Ele me respondeu e eu fiquei com ele por um tempo, beneficiando-me de suas palavras e aprendendo com seu comportamento refinado. Depois voltei para Tustar e diminui ainda mais a quantidade de alimento que comia: comprava um dirham de cevada e o fazia moer e panificar, e quebrava meu jejum com esse pão todas as noites pouco antes do amanhecer – apenas um pouco de pão, sem sal nem sopa. Esse dirham durava um ano para mim.

“Então decidi passar três noites sem comer e comer uma noite, depois aumentar para cinco noites [e comer uma noite], depois sete, depois vinte e cinco. Mantive esse regime por vinte anos. Depois parti e vaguei pela terra por alguns anos, depois retornei a Tustar; depois costumava passar a noite inteira em oração, e foi Deus Altíssimo quem quis assim.” Disse Ahmad: “Nunca o vi comendo com sal até que voltou para encontrar Deus Altíssimo.”

Do Livro 22 do Ihya’ ‘Ulum al-Din, de Al-Ghazali: “Sobre o treinamento da alma, o refinamento do caráter e a cura dos males do coração”. Tradução da equipe da Editora Bismillah a partir da tradução para o inglês de Ridhwan ibn Muhammad Saleem.

NOTA: A Editora Bismillah não necessariamente compactua com as ideias e atitudes prescritas neste e em outros textos, que são publicados para propósitos informativos.