BREVE APRECIAÇÃO DE IBN ‘ARABI

Aqui no Brasil, o ensino de história é deficiente – principalmente quando falamos de história medieval. A idade média é apresentada como uma época de trevas e ignorância. Já faz tempo, no entanto, que os historiadores derrubaram esse mito e demonstraram de que modo os pensadores medievais conservaram e desenvolveram os conhecimentos da antiguidade.

Se isso é verdade para a idade média na Europa do norte, o é mais ainda para a Península Ibérica, onde ficam os modernos Portugal e Espanha. Aquela região, dominada pelos mouros (como os europeus chamavam os árabes e berberes), foi um verdadeiro polo de cultura e conhecimento na época, e os europeus do norte iam para lá em busca de estudo. Além disso, foi da Andaluzia medieval que saíram alguns dos maiores eruditos da história. Um deles foi Ibn Arabi.

Quem foi Ibn Arabi?

Ibn Arabi, também conhecido no mundo islâmico como “o grande mestre”, foi um poeta, filósofo, metafísico e jurista. Ele nasceu em 1165, na cultura moura andaluza. 

Seu pai era descendente da tribo árabe de Tayy, enquanto sua mãe era descendente de berberes. Ibn Arabi nasceu em uma família religiosa, na qual seu pai e dois de seus tios eram conhecidos sufis.

Aos 16 anos, ele sentiu um forte chamado para se voltar para a espiritualidade e teve um sonho com Jesus, Moisés e Muhammad – os principais profetas de cada uma das religiões abraâmicas. 

Após esse sonho, seu pai o enviou para estudar ciências religiosas. Entre seus professores, estão Ibn Rushd (Averróis) e Al-Uraybi.

Ele viajou extensivamente pelo mundo islâmico, passando por Túnis e Cairo, realizando a peregrinação a Meca e visitando várias cidades da região. Ibn Arabi era um estudioso prolífico e entre as personalidades que estudaram com ele está Shams-i Tabriz, o famoso guia de Rumi. 

Supostos encontros de Ibn Arabi com Ertugrul e Rumi

Recentemente, Ibn Arabi se tornou popular novamente. Dessa vez, como personagem da série Ressurreição: Ertugrul, inspirada na vida do pai do fundador do Império Otomano. 

Em muitas cenas, o vemos aconselhando ou consolando outros personagens, ou acompanhado de seus discípulos. Além disso, na trama, ele é também guia espiritual de Ertugrul.

De fato, durante suas viagens, Ibn Arabi passou por muitas regiões cujos nomes serão familiares aos fãs da série. Como, por exemplo, Anatólia, Konya e Damasco, pelas quais o Ertugrul histórico também passou.

No entanto, é importante destacar que apesar de terem sido contemporâneos, não há registros históricos de um encontro entre Ibn Arabi e Ertugrul. Em contrapartida, há indícios de que Ibn Arabi pode ter se encontrado com Jalal ud-Din Rumi, outro grande nome do sufismo.

O pai de Rumi, Baha ud-Din Walad, deixou Khorassan (atual Afeganistão) com sua família por volta do ano de 1220. Juntos, eles passaram por Bagdá, Meca e Damasco.

Rumi teria estudado em Damasco na mesma época em que Ibn Arabi lecionou nessa cidade, pela qual os dois passaram durante suas viagens. Embora não haja registro de um encontro entre os dois, sabemos que Rumi teve amizade com Sadr al-Din al-Qunawi, discípulo e filho adotivo de Ibn Arabi.

A influência desses grandes mestres do sufismo foi sentida não só na época em que viveram, mas também nas gerações futuras. Também é sabido que o Estado Otomano, fundado em 1299, teve como alicerce intelectual o sufismo.

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Quais eram os ensinamentos de Ibn Arabi?

Um dos temas mais abordados na obra de Ibn Arabi é a realidade divina e a experiência humana em relação a ela. Seus ensinamentos são ao mesmo tempo universais, uma vez que abrangem temas contidos em várias religiões, e enraizados no Alcorão e na Sunna. 

O principal conceito que é necessário compreender para entender Ibn Arabi é o de “unidade do ser” (wahdat al-wujud). Isso significa que a unidade é única e indivisível e se manifesta em todas as imagens do mundo, ao mesmo tempo em que as transcende de modo absoluto.

Segundo essa doutrina, o “ato de ser” é exatamente o mesmo em Deus e nas criaturas. A diferença entre os dois casos é que o ato de ser em Deus é originário, necessário e total, ao passo que, nas criaturas, é derivado, contingente e limitado. O ser das criaturas provém integralmente do ser divino, e as criaturas distinguem-se entre si pelos diferentes tipos de limitações que Deus mesmo impõe a Seu “ato de ser” primordial.

A doutrina de Ibn Arabi foi considerada por alguns como errônea, pois afirmaria uma espécie de continuidade entre Deus e as criaturas. Quando corretamente entendida, no entanto, não atinge em absoluto a transcendência divina, pois nenhuma criatura se identifica a Deus enquanto tal, senão somente em seu puro ato de ser. Trata-se de uma afirmação da doutrina monoteísta segundo a qual o ser de Deus é necessário e o das criaturas, contingente.

O monoteísmo verdadeiro, para Ibn Arabi, consiste em realizar a visão desse ato de ser simples e puro. Assim como “la ilaha illa Allah” (não há divindade exceto Deus), deve-se entender que “não existe realidade (haqq) exceto Al-Haqq (O Real, um dos nomes de Deus)”. Essa visão pode ser obtida pelo caminho dos sufis, e o ser humano que a alcança realiza sua vocação de “imagem de Deus” e se torna o “Homem Universal”, o maior exemplo do qual foi o Profeta Muhammad (que a paz esteja com ele).

Sua Obra

Não se sabe ao certo quantas obras Ibn Arabi escreveu, mas estima-se que seja em torno de 350, das quais cerca de 85 títulos são certamente de sua autoria. Embora tenha escrito livros enquanto vivia na Andaluzia, acredita-se que a maior parte de seus escritos se deram na segunda parte de sua vida, enquanto vivia em Meca, na Anatólia e em Damasco.

Seus trabalhos mais importantes são:

  • O Diwan, uma coleção de poemas, considerado uma das maiores obras da poesia árabe.
  • Fusus al-Hikam, considerado a quintessência de seus ensinamentos espirituais. O livro tem 27 capítulos, sendo cada um deles uma explicação dos ensinamentos e da realidade espiritual de um profeta. É uma exposição dos sentidos internos da sabedoria da tradição abraâmica.
  • Futuhat al-Makkiyya é uma vasta enciclopédia de conhecimento espiritual, com 560 capítulos, que levou cerca de 22 anos para ser escrita. Foi redigida durante as viagens de Ibn Arabi pelo Oriente Médio e fala de diversos assuntos, como metafísica, cosmologia, antropologia espiritual, psicologia, jurisprudência e diversas outras ciências islâmicas. Nela, Ibn Arabi expõe sua doutrina sobre os significados espirituais dos ritos islâmicos, a natureza da hierarquia dos santos, o significado ontológico das letras do alfabeto árabe, as ciências dos 99 nomes de Deus e o significado das diferentes mensagens de vários profetas, entre muitos outros assuntos.
  • Uma coletânea de cartas (Rasa’il Ibn al-’Arabi), nas quais fala de assuntos específicos a amigos e discípulos.

O livro Epístola das Luzes, a ser lançado pela Editora Bismillah no dia 11 de março, é uma dessas cartas, provavelmente escrita por Ibn Arabi a seu enteado Sadr ud-Din Kunawy. É um pequeno tratado que descreve as condições para que se faça o retiro espiritual solitário (khalwa), o modo de fazê-lo e os graus de ascensão espiritual experimentados por quem se dedica a essa prática. Apresenta interesse também pela detalhada descrição que faz dos estados de extinção (fanaʾ) e permanência (baqaʾ) e da “descida” de volta à criação que deve ser empreendida por aqueles que alcançaram esses dois estados, descida essa que aperfeiçoa o grau espiritual do caminhante e foi chamada por alguns ocidentais de “realização descendente”.

Sua passagem

Ibn Arabi, pelo modo aberto e direto com que falava sobre as realidades espirituais, nem sempre foi  compreendido e bem recebido pelos muçulmanos. Ao contrário, colecionou inimizades. Numa das histórias sobre sua morte, conta-se que certo dia, ao dar um sermão em Damasco, ele disse:

“Povo de Damasco, o deus que vocês adoram está debaixo dos meus pés!” 

Ao ouvir isso, o povo enraivecido o apedrejou e matou, sendo ele enterrado no mesmo local. Mesmo após sua morte, as pessoas destruíram sua tumba, que desapareceu sem deixar vestígios.

Uma das frases mais enigmáticas que Ibn Arabi tinha dito era: “Quando a letra sin entrar na shin, será descoberta a tumba de Muhyiddin.” Quando o nono sultão otomano, Selim II, conquistou Damasco, em 1516, soube que um erudito local, chamado Zembilli Ali Efendi, havia interpretado que aquela frase de Ibn Arabi significava “Quando Selim (cujo nome começa com a letra sin) entrar na cidade de Sham (um dos nomes de Damasco em árabe, que começa com shin), descobrirá a tumba de Ibn Arabi.

E assim foi: com a ajuda dos eruditos da época, Selim encontrou o local em que Ibn Arabi havia sido martirizado e enterrado. Nas escavações, encontraram também um grande tesouro de moedas de ouro, mostrando que Ibn Arabi se referia ao tesouro quando afirmou que o deus daquelas pessoas estava debaixo dos seus pés. Com o tesouro, o sultão construiu um santuário e mesquita em um local chamado Salihiyya, no monte Qasiyun, onde se encontra até hoje a tumba do grande santo.

Após sua morte, os ensinamentos de Ibn Arabi espalharam-se rapidamente por todo o mundo islâmico e ele é reverenciado até hoje como um dos maiores expositores da doutrina do sufismo. 

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